Prefácio

PREFÁCIO

Este livro é fruto de TCC – Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Design da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

Obra de um jovem designer, com a marca de uma visão pessoal, resultante de processo de auto-observação, que o inseriu no debate contemporâneo sobre decolonização e design. O autor esclarece que discussões e embates estudantis da chamada “turma da bolha” do curso de Design – T08 e T09, do ano de 2013 - abriram caminho para a construção da presente publicação.

O objetivo do livro é dialogar com o pensamento de autores que refletem de forma relacional, para além da perspectiva eurocêntrica, sobre design e complexidade do mundo contemporâneo, tal como proposto por Arturo Escobar, Cameron Tonkinwise, Dori Tunstall, Gui Bonsiepe, Tony Fry, entre outros.

Todos eles apresentam perspectivas transdisciplinares, que tensionam certezas estabilizadas do saber disciplinar e que também se alimentam de pensamentos de culturas ancestrais com seus valores, estabelecendo assim uma forte convergência entre design e as áreas das ciências humanas e sociais, bem como seus referenciais conceituais.

No Brasil, a temática da colonialidade esteve presente na crítica de cinema, a partir de dois textos seminais: no artigo publicado no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, em 1960, escrito pelo professor e crítico Paulo Emílio de Salles Gomes, intitulado “Uma situação colonial?” e no manifesto “A Estética da Fome”, publicado na Itália, no ano de 1965, pelo cineasta Glauber Rocha.

Passado mais de meio século, as condições se transformaram e o tema da colonialidade apresenta um novo enquadramento. Os dois textos citados continuam vigorosos. Paulo Emílio avalia todos os setores integrantes do cinema brasileiro à época e aponta: “a situação de coloniais implica em crescente alienação e na depauperação do estímulo para empreendimentos criadores. Esses homens práticos não estão na realidade capacitados para nenhuma ação de consequências no quadro geográfico e humano brasileiro. Podem ter ideias e fazer projetos, mas sempre dentro dos limites estreitos ditados por uma situação externa diante da qual se sentem desarmados”.

A condição colonial apontada por Salles Gomes foi também analisada por Glauber Rocha que trata do impasse de comunicação que nos liga ao mundo europeu: “Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado, nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino”. Mais à frente ele prossegue: “A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida não é compreendida”.

No Brasil, neste mesmo período, a presença de Lina Bardi, especialmente decorrente de seu trabalho na Bahia nos mostra a riqueza do design vernacular brasileiro, relacionado à práticas de adaptação e sobrevivência em condições adversas da vida cotidiana. Lina revelou para nós mesmos um design espontâneo, que se encontra presente nas feiras, nos largos, nos armazéns do nordeste do Brasil.

Ela colecionou e documentou particularmente as práticas de reaproveitamento de embalagens descartadas. Testemunho de uma cultura de opressão, que o reino exerceu sobre o Brasil. Os navios aportavam em Ilhéus carregados de queijos e outros produtos e partiam carregados com cacau e fumo. O queijo era consumido pelos ricos e restava a embalagem, que era reutilizada pelos pobres. A professora e crítica Gilda de Mello e Souza, em seu livro Exercícios de Leitura nos dá a importante chave para a compreensão deste fenômeno: o conceito de estética pobre.

Pensar a colonialidade e os processos de decolonização é também considerar esta cultura e sua estética. Mello e Souza argumenta que: “Em oposição à Estética do Classicismo de Jean Maugüé e Lévi-Strauss, as analyses de Roger Bastide giram em torno de outro conceito de arte (…). A sua Estética é pois uma Estética de antropólogo, de estudioso dos fenômenos de misticismo religioso. (…) Era natural pois que, chegando a um país sem grande tradição cultural, tivesse se dedicado à elaboração de uma estética pobre (…) que voltando as costas para os grandes períodos e as grandes manifestações artísticas, fosse desentranhar o fenômeno estético do cotidiano, dos fatos insignificantes e sem foros de grandeza, que compõem , no entanto, o tecido de nossa vida”.

Mais recentemente, José de Souza Martins, em breve análise sobre o habitat informal da população em situação de rua e o discurso político-caritativo a ela referido que: “(…) ignora a competência imaginativa do pobre. O que nos põe Diante da contradição que abre um abismo entre o pobre, que é dono de um imaginário rico, e os que dizem ajudá-lo, comparativamente ricos, que são pobres de imaginação sobre a pobreza”.

Trata-se pois do reconhecimento de manifestação importante da capacidade de criar e fazer do povo brasileiro. Em alguns cursos superiores de design, estes fenômenos do saber fazer popular e de suas relações com a antropologia do cotidiano instigaram ricas experiências pedagógicas, como foi o caso daquelas realizadas com foco em tecnologias apropriadas, lideradas pelos designers Gui Bonsiepe e Gustavo Amarante Bomfim, na Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba. Bonsiepe compreendia a contribuição do design como instrumento de autonomia no contexto da realidade latinoamericana, afinal, sua prática profissional no governo de Salvador Allende, no Chile, no período de 1970 a 1973 apontava nesta direção.

Para entendermos o atual esforço teórico dos coletivos de jovens estudantes e pesquisadores relativo ao design e decolonialização, é importante ressaltar a tradição crítica e engajada existente no Brasil, nos textos imprescindíveis de nossos grandes mestres.

Em todo o mundo, o início da segunda década do século 21 foi marcado por manifestos de rua, em protesto contra o Sistema. A juventude brasileira também se mobilizou e participou deste processo. No campo da teoria e da crítica do design, estes jovens se articularam para retraçar as formas tradicionais da produção autoral dos pioneiros. Criaram coletivos, reunindo jovens vozes, como o Decolonizing Design Group, que nos convida a compreender o design para além das fronteiras disciplinares.

Analisando os episódios do ano de 1968 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Antonio Candido em seu belo texto intitulado “O mundo coberto de moços” afirmou: “(…) O moço se transformou durante algum tempo na força mais viva da sociedade, parecendo inclusive substituir o operário como fator principal na transformação das instituições”.

A turma da bolha, correspondente à junção das turmas T08 e T09 do curso de Design da FAU se inseriu criticamente na atmosfera dos manifestos de 2013. Ao se graduar, alguns destes alunos optaram por uma revisão de temas relevantes para o design.

Dentro deste espírito e imbuído do desejo de compreensão dos aspectos relacionais do design, que se situa o debate sobre decolonização. Recomendo vivamente a leitura deste livro, que nos convida a considerar o design e outros mundos possíveis.

Maria Cecília Loschiavo dos Santos

Professora Titular FAU-USP

22 de maio de 2021